quarta-feira, setembro 12, 2007

O Túmulo dos Pirilampos, de Isao Takahata

Nota: esta crítica discutirá alguns aspectos importantes da trama desta obra. Se ainda não viram o filme e desejam sem qualquer tipo de conhecimento da sua história, por favor não leiam esta crítica. Apesar de o desfecho da história ser revelado logo no seu início, mas enfim... Esta é uma obra incrível, e não quero correr o risco de a estragar a alguém.



Lágrimas

"O Túmulo dos Pirilampos" é uma obra que nos entra de rompante no nosso ser, dirige-se ao nosso coração, parte-o em pedaços, e ao mesmo tempo sussurra-nos ao ouvido algo que deverá ficar connosco durante o resto dos nossos dias. Este é um filme devastador. Emocionalmente devastador. Digo sem preconceitos que "O Túmulo dos Pirilampos" é o mais triste, comovente, tocante filme que vi até hoje.
É, por isso, complicado falar desta obra-prima. A ligação criada com o espectador é de tal forma forte que este tem dificuldades em exprimir o que sente em relação a ela. Posso dizer, no entanto, que este é talvez o mais poderoso filme anti-guerra jamais feito. Mas ao mesmo tempo arrependo-me de dar a este filme a etiqueta de "filme anti-guerra". É anti-guerra, sim, mas é também muito mais que isso.

Esta é a história de dois irmãos: Setsuko, uma jovem rapariga de quatro anos, e Seita, um jovem rapaz de catorze anos. Ambos são vítimas de um bombardeamento durante a Segunda Guerra Mundial, sendo obrigados a procurar refúgio em casa de sua tia. Ela, no entanto, começa gradualmente a tratá-los com desprezo, guardando para ela e os seus convidados grande parte da comida, e acusando-os de serem inúteis para o país em estado de guerra. Seita decide então pegar na sua irmã e abandonar a casa de sua tia, de forma a poderem viver sozinhos da forma que decidirem. Encontram um pequeno refúgio, similar a uma caverna, e decidem fazer desse lugar a sua nova casa. Infelizmente, a comida começa rapidamente a escassear, e a sobrevivência dos irmãos é ameaçada.

"O Túmulo dos Pirilampos" é, pois, na sua forma mais básica, uma história de sobrevivência. O seu desfecho, no entanto, é revelado imediatamente no início do filme: ambas as crianças morrem. E, ao longo de todo o filme, o espectador acompanha os seus espíritos à medida que estes relembram o passado antes da sua morte.

O facto de sabermos desde o seu início o desfecho do filme torna-o ainda mais devastador em termos emocionais. Vemos os dois irmãos a tentarem desesperadamente sobreviver, vemo-los a tentarem cuidar um do outro, vemo-los com a tão típica inocência e esperança da juventude... mas nada disso os poderá salvar do seu fim trágico. Pois serão ambos vítimas não da guerra em si, mas do tipo de sociedade que dela deriva. Vítimas do médico que trata Setsuko com indiferença; vítima da tia que os trata com desprezo: vítimas do enraivecido agricultor que apanha Seita a roubar por desespero. São, pois, vítimas de uma sociedade derivada de um conflito que tolda as mentes dos habitantes de um país, tornando-os insensíveis, e até mesmo egoístas. Tal sociedade, consequência de um conflito que já por si tem inevitáveis efeitos devastadores, não foi feita para suportar duas inocentes crianças que desejam apenas sobreviver. A tragédia de Seita e Setsuko era inevitável dentro de tal sociedade.


"O Túmulo dos Pirilampos" foi realizado por Isao Takahata, co-fundador (juntamente com o grande Hayao Miyazaki) do Estúdio Ghibli. Ninguém faz animação como o estúdio Ghibli, mas esta é de longe a sua obra mais emocional e poderosa. É um drama de um poder incrível que revela que a animação japonesa (o chamado "anime") não é apenas um género, mas antes um estilo dentro do qual existem vários géneros. Existe, infelizmente, o preconceito de que a animação é apenas para crianças. Os filmes do Estúdio Ghibli já há muito que demonstraram o quão errado é esse preconceito. "O Túmulo dos Pirilampos" não é uma comédia familiar, não é um filme com feiticeiros e magia, não é um filme em que tudo acaba bem no final... é um poderosíssimo drama. Um drama que, por acaso, é animado.
E o filme ganha com isso. Não consigo imaginar esta obra como um filme de imagem real (existe uma versão em imagem real... mas essa concentra-se na perspectiva da tia, e não na dos irmãos). O cinema de animação sempre teve uma certa magia que lhe permite várias coisas, entre elas o realçar dos sentimentos das personagens. Esse realçar atinge o seu auge com a obra-prima de Isao Takahata. Os animadores criaram duas personagens incrivelmente humanas, seja no incrível pormenor da forma como Setsuko treme de medo após um bombardeamento, ou na forma como a boca de Seita se deforma quando este chora.
O grande trunfo do filme é o desenvolvimento da relação entre os dois irmãos, tratada de uma forma extremamente realista (magnífica a forma como mostram os irmãos a brincar na praia, ou a brincarem no banho... pormenores que podem não ser de uma necessária importância para a história, mas que são de uma extrema importância para aquilo que o filme quer transmitir). Seita age como um rapaz de catorze anos, e Setsuko age como uma rapariga de quatro anos. E ambos agem como dois irmãos reagiriam, brincando um com o outro, cuidando um do outro, preocupando-se um com o outro... de facto, "O Túmulo dos Pirilampos" é um filme que transmite mais realismo e mais emoção (é, tal como já disse, o filme mais triste/comovente que vi até hoje) que grande parte dos filmes de imagem real que existem por aí.

Este não é um filme fácil. Chorei como já não chorava há muito quando o vi, e marcou-me como uma obra cinematográfica raramente consegue. E é por isso que é o melhor filme anti-guerra que jamais vi. De todos os filmes anti-guerra que vi até hoje, este atreve-se a ir onde os outros não se atreveram. Não existe embelezamento, apenas realismo. Existe esperança, mas ela não se confirma. E, tal como várias outras crianças, Seita e Setsuko são vítimas de uma guerra que não pediram, de uma guerra na qual não participam.

Este é um filme que viverá comigo até ao fim dos meus dias. É um filme cuja lição não deve ser esquecida para que o passado não se repita no futuro. E para que nunca esqueçamos aqueles que pereceram pelos erros cometidos no passado.
"O Túmulo dos Pirilampos" é uma obra tão poderosa quanto obrigatória, e deve urgentemente e obrigatoriamente ser visto por qualquer amante da vida humana. Apenas assim poderemos verdadeiramente perceber os horrores da guerra, e derramar lágrimas por aqueles que pereceram no passado. Muitas, muitas lágrimas.



10/10

12 comentários:

Francisco Mendes disse...

Uma das minhas emocionantes Animações de Culto!

Gonçalo Trindade disse...

Comigo é exactamente o mesmo. É, muito provavelmente, o mais belo filme de animação que jamais vi. Absolutamente incrível.

C. disse...

Minha adorada Ghibli que só me dá obras-primas. Este filme é poderoso, emocionante, enorme! E pensar que muita gente não conhece porque continua a ter preconceitos em relação à animação...

Gonçalo Trindade disse...

Ninguém faz animação como o Studio Ghibli. Eles elevam verdadeiramente o cinema de animação a um novo patamar... e creio que este "O Túmulo dos Pirilampos" é o melhor exemplo disso. É um filme (tal como dizes) simplesmente enorme... grandioso... é uma obra-magna do cinema.
Pena que haja por aí tanta gente a julgar que a animação é só para crianças... se tivessem uma mentalidade um pouco mais aberta...

Anónimo disse...

Vi-o há uns meses e é de facto uma obra tocante pela forma como mostra as agruras da guerra nos mais frágeis dos seres, as crianças. Não me parece de todo «animação-para-crianças» mas também não me parece um filme intocável...
Por exemplo, quando dizes:
É um filme que se atreve a ir onde os outros filmes não se atrevem...
parece-me uma afirmação manifestamente exagerada. Assim de repente lembro-me de vários títulos capazes de se atreverem, a começar pela trilogia da guerra do Rossellini, em especial o Germania Anno Zero - insuperável no desconforto que nos causa pelo realismo, pela humanidade...

Gonçalo Trindade disse...

Sim, tens razão. Tento sempre evitar usar certas afirmações que são óbvios exageros (é por isso que, por exemplo, chamo a "O Túmulo dos Pirilampos" o filme mais comovente que jamais vi, em vez de simplesmente o apelidar de um dos filmes mais comoventes da história do cinema). É óbvio que não posso afirmar que este filme anti-guerra se atreve a ir onde os outros filmes anti-guerra não se atrevem... não posso dizer isto porque nunca vi todos os filmes anti-guerra jamais feitos. Posso apenas dizer que, dos filmes anti-guerra que vi até hoje, este atreve-se a ir onde os outros (que eu vi... categoria na qual a trilogia de Rossellini não entra) não se atrevem. Neste caso deixei-me levar um bocado, e acabei por usar uma frase que é obviamente um exagero... exageros esses que tento ao máximo evitar nas minhas críticas. Vou já mudar isto, muito obrigado pelo aviso :).

Luís A. disse...

eh la! não conhecia...mas pela tua apaixonada crítica fiquei curioso. abraço

Gonçalo Trindade disse...

Não é muito conhecido, infelizmente. Mas é uma incrível obra-prima, tenta dar-lhe uma olhadela que vale bem a pena (mas, tal como já disse, é emocionalmente devastador... eu ainda estou a reunir coragem para o voltar a ver mais uma vez). Comprei o DVD na Fnac do Colombo num pack que também incluía O Castelo Andante... ambos os filmes por 16 euros. Aproveita, que O Castelo Andante também é um belo filme :). Abraço, Luís.

Unknown disse...

Este é talvez um dos filmes mais tristes que vi juntamente com o Ninguem Sabe ( tambem japones mas de carne e osso). É brutal a forma como as personagens são retratadas e o sufoco que sofremos quando estamos a ver o filme, pelo menos falo por mim que queria a todo o custo que eles sobrevivessem apesar de saber à priori que tinham orrido. É um filme marcante que só podia ter saido dos estúdios Ghibli..
Ouvi uma critica algures que considerava o como o Império do Sol animado ... para mim o Império do sol é o Túmulo dos Pirilampos em carne e osso. Abraço

http://stolenideas.wordpress.com/

Gonçalo Trindade disse...

É esse um dos grandes trunfos do filme: o seu desfecho é revelado imediatamnte no início. Desta forma o filme ganha mais impacto no espectador. É claro que teria sido emocionalmente poderoso se o desfecho fosse revelado apenas no final do filme, mas desta forma ele não teria ganho aquele estatuto de... digamos de meditação acerca das consequêcias da guerra, e ter-se-ia ficado por ser uma história ligeiramente mais banal. Também gosto bastante de "O Império do Sol", mas creio que este o supera (talvez porque se assume mais como uma tragédia que o filme de Spielberg). O Nobody Knows, apesar de nunca o ter visto, sempre me pareceu seguir uma premissa similar à do filme do Studio Ghibli... é um filme que já há muito tempo me aguçou a curiosidade. Abraço!

Inës disse...

Sem dúvida dos filmes de animações de animação mais tocantes que já vi..
Obrigado Gonçalo por me incentivares a ver os teus filmes de culto, que passaram a ser os meus preferidos tambem.
Apesar de não ter chorado para tua tristeza tocou..O contrário era impossivel!
Não posso deixar de dizer o quanto aprecio o teu bom humor..:D 'Abraçados' lool Continua Gonçalo! :)

Gonçalo Trindade disse...

Obrigado, Inocas :). Ainda não percebi como é que raio vocês não choraram com o filme, mas fico muito satisfeito por o terem adorado. E não te preocupes...o meu sentido de humor sarcástico-inspirado-nos-python-algo-intelectual veio para ficar :D!

AGRADECIDOS! DUM! (qualquer dia o Abraams há-de usar estas ideia todas...).

És um espectáculo, Inocas :)